quarta-feira, 18 de fevereiro de 2015

Cinzento

Não é o texto mais triste, nem o mais alegre. Não será o meu preferido, não será o mais comprido, nem o mais curto, não escolherei as melhores palavras, não terá poesia, tão pouco rima, métrica e beleza. Não será engraçado. E começa com uma negação que mais parece um pedido de desculpas aos olhos de quem espera algo que vá além do puro sufocamento. Sem lógica, as palavras saem assim. Embaciadas e sem gosto como comida do hospital. Talvez seja mesmo um ponto-socorro para o que sangra aqui dentro, e, se sal é veneno para os hipertensivos, a lógica também envenena os hiper românticos. Pode ser apenas um exagero, um tanto faz, uma tempestade num copo de água. Um acorde desafinado de uma canção encharcada pela saudade. A agulha risca o meu vinil e tudo o que saí são fragmentos de um perdão inverossímil. Pois eu não perdoo. Não perdoo e sinto ódio de ti por teimares em insistir, mesmo porque eu e tu nunca nos separámos. Sempre forçámos aquele ‘nós’ embasbacado, mais cá do que lá, desgraçado. Aquele ‘nós’ que existia dia sim e dia não, prevalecendo uma dúvida que nos levava a simplesmente acreditar. Éramos tudo aquilo que chamamos de inspiração. Éramos. Éramos do verbo: Eu não existo mais na tua vida, porque é tu continuas aqui? Joga o marcador de livros fora, desamassa a ponta da página, esconde, rasga, queima, faz o que quiseres, mas não te permitas continuar. Deixa que os textos morram sufocados, afogados nas lágrimas das cinzas que o relógio solta. A procura acabou, os sonhos fecharam as pálpebras pela primeira vez. É a tristeza que não deixa fechar as cortinas de um palco vazio, acompanhado pelas moscas no fim da plateia que aplaude a morte de sabe-se lá o quê. O mistério do amor será descoberto por alguém com mais sorte do que aquele ‘nós’ que sempre teve uma pitada a mais de ti, porque eu só sirvo para escrever, não para amar. Abre as asas e voa por ‘entre os espaços’, ‘entre as janelas’ que deixo a sobrar na porta das minhas palavras. Eu ponho a borracha na tua mão, mas lembra-te que o carvão ainda ficará comigo. Porque sempre fomos assim: criatura e criador. O que quer que tu sejas, deixa me ser o monstro. Deixa que eu assuma a culpa, mas perdoa-me. Nós nunca vamos ficar bem, tu sabes disso. Choramos por nada. O nosso sofrimento é quase uma piada sem graça. Então, no último ato, nos créditos finais, na ponta dos dedos que escrevem uma palavra e apagam três, permite-me que eu me apresente pela primeira vez: Eu sou aquela que passou a acreditar no céu só para ter como te matar dentro do próprio coração e, ainda assim, saber onde te encontrar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário